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Ficha técnica

Rio de Janeiro, 1999

98 páginas, 65 poemas e textos poéticos

Programação visual: Heliana Soneghet Pacheco

Editoração eletrônica: Hares

Revisão: Marcelo Secron Bessa

Fotografia: Anna Agonigi

Gráfica: Reproarte

Comentários do poeta

O DIÁRIO DO TRAPEZISTA CEGO: A AVENTURA DO VÔO

A criação do livro baseou-se num conto que não entrou na seleção final dos textos: "O início do grande amor", que conta uma ida minha, de meu pai e meu irmão a um circo, na Praça Onze (RJ), na década de 60. Durante o encantado espetáculo, de repente o ciclista deixou o veículo de sua refinada arte cair no chão, diante de uma imensa platéia que se calou. Ninguém sabia o que fazer. Quer dizer, meu pai sabia. No meio do silêncio, enquanto o artista levantava a bicicleta, constrangido, meu pai se levantou e começou a aplaudi-lo com entusiasmo. Todos o acompanharam naquele instante e dali em diante eu o acompanhei, com admiração absoluta, pelo resto da vida.

Por que o texto não entrou no livro? Porque eu só queria que ele fosse uma espécie de bússola. E também porque nunca consegui dar uma redação digna à imensa capacidade de meu pai de amar a vida e de ensinar a mim e a meu irmão, sem nunca ter dito uma palavra a respeito, a amar a arte. O diário do trapezista cego é dedicado a meu pai:

Este diário é dedicado a

Fabio Alves Corrêa

às vezes vendedor, sempre fotógrafo

filho de Maria, pai de Paulo

nosso e de cada dia

às vezes viajante, sempre cintilante

amado, desprezado

santificado esteja;

senhor de luas serenas

mãe disfarçada de mar

às vezes curandeiro, sempre seresteiro

dono do mundo, porto de tantos

meu e pai.

Este diário é para o eu

que há em meu pai

de quem, em seu nome

me reconheço filho:

o coração que o levou

é o mesmo coração que me conduz.

O livro foi dividido em sete capítulos, cujos títulos estão diretamente ligados ao mundo do circo: A última cena, Coxia, Palco, Temporada, Perfeição, Trailer e Trapézio. Muitos dos textos também trazem, propositalmente, expressões ligadas ao circo. Outros, de uma forma ou de outra, à arte. Considero o longo poema inicial "A existência" o meu melhor auto-retrato:

(...) Mas tenho a alma sofisticada nada lhe satisfaz

Até felicidade é um porto tão pequeno

Que não adianta a existência de barco ou mar:

Minha alma inventa a necessidade do céu para descobrir ondas.

É cansativo não ser Deus (...)

Além da referência circo, quando selecionei os poemas tinha a cor terra na cabeça, que acabou sendo utilizada na palavra trapezista do título na capa. Era preciso contrabalançar o sonho de meu pai, de que era possível um dia ser totalmente feliz, com a força de minha realidade, de que às vezes somos visitados por uma felicidade possível, nada mais, e que a essa visita devemos oferecer, ainda que por instantes, a vida.

Durante a gestação do livro, senti a necessidade de traduzi-lo visualmente, vê-lo em movimento. Conversei com o cineasta Luís Alberto Rocha Melo, que conhece a mim e à minha poesia como poucos, e ele topou fazer um vídeo não sobre o livro simplesmente, mas sobre o trapezista que ele conseguia perceber em mim. Criou, lindamente, o vídeo O trapezista, que conta com trilha sonora assinada por meu irmão Paulo Corrêa. Se a minha poesia tiver que ter uma cara, é aquela que o Luís desenhou; se tiver que ter um som, é aquele que o Paulo descobriu.

Estrutura gráfica e lançamento

Meu pai era fotógrafo de nascimento, apesar de ter sido obrigado a abandonar a sua arte muito cedo. Mas, para ele, a fotografia era o que a poesia é para mim: respiração. Como o livro era dedicado a ele, pedià designer Heliana Soneghet Pacheco que criasse um álbum de fotografias, no qual os poemas se sentissem acolhidos e registrados para sempre. Decidimos que não haveria fotos visíveis, mas como meu pai gostaria de registrar a cara de alguns poemas, colocamos cantoneiras nas aberturas dos capítulos. Cantoneiras douradas, claro.

A partir daí Heliana criou, para mim, seu projeto gráfico mais bonito. O livro, horizontal, é reforçado por madeiras laterais, num álbum de fotografias luxuosíssimo. E o motivo da capa ser preta é simples: ela me perguntou qual era a principal sensação de um trapezista cego. Respondi que eram a coragem e a atração de voar no escuro.

O lançamento aconteceu no dia 9 de junho de 1999, nos Arcos da Casa de Cultura Laura Alvim, em Ipanema (RJ), onde também foi lançado, no mesmo dia, o vídeo do Luís. Acho que meu pai ficou contente.

Poemas

A EXISTÊNCIA

As folhas rebelam-se das páginas:

quero as raízes; os frutos que fiquem para os passarinhos.

Diante da imponência da tela de cinema

uma imprudência: pensar na vida

reconhecer o que pouco valeu

quase sorrir pelo que sim.

A felicidade é uma meta pequena

Quero mais, muito mais

Quero o que a felicidade não seria capaz de me dar:

a serenidade humana.

A quantas vou

Por quantos ando

Já nem sei do que fui capaz.

Não diga que é tudo uma questão de ponto de vista.

Me proponha ficar, com o porto à vista.

No filme, vitórias, recomeços, felicidades.

Chorei com o mocinho

Mas será o choro dele o premiado, não o meu

Para mim, a recompensa sem castigos

de ter conseguido me emocionar.

Grande coisa chorar com filme americano.

Melhor chorar com novela brasileira:

ao menos é mais patriótico.

Vá lá.

Mas não me veja.

Tenho pressa de fazer 40 anos

Tenho pressa de chegar ao século 21

Tenha pressa de acalmar essa danação

que me queima até com neve viva.

O mocinho é danado mas é calmo e não parece arder

Como consegue?

Como consigo atravessar a ponte quase caída de minha geração

que une alegria e descontentamento numa única faixa de CD?

Não consigo me desfazer

de meus vinis, de meu verniz, de meus viris 37 anos.

Faltam três

Três moedas para a fonte secar

Três amigos para eu alforriar

Três versos quebrados para conserto nenhum

Três alegrias para três fantasias de carnaval

Três para as quatro horas da tarde.

Venha.

Se conseguir sempre esquecer o caminho.

A alma grita pela presença do corpo, do corvo,

do cortejo, do coreto da praça de Marte.

Como gostaria de ter uma alma ambiciosa e espacial

Contar com uma alma humana, serena

que se contentasse em ser figuração

daquele filme italiano da década de 40 que nunca vi.

Sei que a trama me permitiria um anonimato deslumbrante.

Mas tenho a alma sofisticada, nada lhe satisfaz

Até felicidade é um porto tão pequeno

que não adianta a existência de barco ou mar:

minha alma inventa a necessidade do céu para descobrir ondas.

É cansativo não ser Deus.

Se entrar e encontrar apenas meu perfume

dê dois passos atrás, feche a porta e aguarde, ali mesmo,

a próxima primavera.

Posso contar nos dedos os espectadores que me acompanham

na aventura de um filme medonho para uma alma ambiciosa.

Fui acostumado a cinema de arte,

a não entender para depois acolher.

O cinema ainda hoje me incomoda

Sua suntuosidade agride.

Rouba segredos, impõe encontros e, se encanta, exige emoções.

Mas reconheço que é, de todas as artes, a mais elegante

embora não me atraia além da curiosidade de vencê-la.

Cavaleiro sobre dragão scope, avanço sobre a tela

Luta, nada de vitória, som, nada de derrota,

imagem, muito sono, chão de lua,

Se entrar e me encontrar adormecido

dê dois passos à frente e me roube o sono que é seu.

Este era pra ser o texto de abertura de meu próximo livro

um diário cósmico

do trapezista que não recebe o público no camarim

pois precisa, ali sim, concentrar-se

para escrever cada pequena curva vencida do vôo alcançado.

Era para ser um retrato descontraído

três por um, dois por um, um por um, todos por um

e eu, sem saber em que rede cair.

Era pra ser o que é.

Ainda que eu diga que não

Ainda que eu finja que não

Ainda que eu disfarce a maturidade abandonada

numa tarde que roubou o cinema para mim.

É assim que eu posso prometer

É assim que eu posso interceder

É assim que eu posso abster

É assim que eu posso receber

É assim que eu posso viver

sem ter que pedir desculpa ou justificar alegria.

No meio da noite, sem que eu perceba

observe o velho sapo morador do ralo da varanda.

Se conseguir olhá-lo sem desejar matá-lo um instante que seja

grite com vigor para acordar toda a vizinhança.

Assim, mesmo que ainda pouco humano

mesmo que ainda pouco sereno

eu poderei entender que mesmo ainda assim eu te amo.

ASTRONAUTA Nº 4

Quando o homem pisou a lua pela primeira vez, eu estava com os primeiros nove anos de minha vida. Era madrugada brasileira na televisão, e eu tinha tanto sono que não resisti.

Ao acordar, com alguém insistindo em meu nome para ir dormir na cama, notei que adormecera com a cabeça sobre o teclado do imenso piano negro fechado brilhante de cauda interminavelmente interminável da sala.

Os parentes, intimidados pela façanha que testemunhavam, jamais entenderiam se eu lhes revelasse que mesmo desacordado era eu o mais perfeito parceiro daqueles três astronautas: durante o breve mas profundo sono, eu havia composto uma valsa para pés flutuantes lentos interminavelmente intermináveis, que pelo mais profundo amor pela superfície a ser acariciada se fazem ainda mais flutuantes lentos refeitos em saltos interminavelmente intermináveis.

Deixei-os na sala, calados e distantes de minhas convicções. Deixei-me a salvo, indo dormir onde mandaram, jurando em silêncio e em nome de minha pequena humanidade, que também eu havia conquistado a lua.

TRADIÇÃO

Antes do amanhecer

ainda com a casa em sombras

levanto e afio os dedos na poesia.

Apenas para retrançar

com estrelas do céu ou do mar deixadas à porta

a rede

que me permite, pescador ou trapezista

o delíriro na existência do risco.

Quando fecho as portas de meu sonho

protejo o que esqueceu em mim.

Viro pai e mãe do que não se transforma

e fica

tornando-se parte do futuro que se anuncia

e não chega.

Cumpro a profecia

colecionando objetos de pouco valor

adquiridos em feiras de antigüidade.

Tudo em mim combina com facilidade

Muitas vezes, sem querer, danço tango

ao som de um arrastado bolero.

Muitas vezes, quando posso, sou feliz.

O circo

o riso à distância

o eco do aplauso

tudo em mim é passível de sonho jamais desfrutável.

Não sei como suporto saber

da existência do contorcionista que me rouba gestos.

Tropeço na aurora do dia e peço desculpas.

Quando olho para trás de tudo me vejo.

Todas as vezes que morro

me enforco com a corda do horizonte

e fico

como que à cruz, esperando o sol se pôr.

Apenas para ser maternalmente salvo pela lua

e confessar :

o amor que ficou não cabe no tempo

ECO

Não é minha a miragem naquele deserto.

Tenho saudade como quem tem fome.

Já não consigo saciá-la com esmolas.

É necessário o roubo.

O TEMPO DAS COISAS

Os dois vinham em minha direção na rua. Na hora de falarem o texto decorado, o menorzinho apenas me olhou, pouco incomodado com o cutucão recebido do maior, que recitava em seu ouvido “Feliz Natal, moço, Feliz Natal”, num ensaiado sorriso de falso adulto.

Perguntei quanto custava o drops. Comprei um de cada. O menorzinho continuou em silêncio, enquanto o outro me agradecia e pedia a Deus que me abençoasse, me dando de volta em dobro. “Agradece, Jaime”, ordenou. “Obrigado, moço”. “Não tem de quê”.

Enquanto o maior já começava a escolher outro alvo na calçada, o menorzinho manteve-se fixo em mim. Até que conseguiu repetir, sem que o outro lhe ordenasse, “Obrigado, moço”. “Não tem de quê, Jaime”. Com a expressão própria de quem se sente reconhecido, ao ouvir seu nome com certa intimidade, esboçou um sorriso de criança deflagrada. Conseguiu, também, já íntimo, desejar a mim o tal “Feliz Natal” que não sabia ainda muito bem sobre o que se tratava. Mas, eu, sim, Jaime.

CONJUGAÇÃO FUTURA

Eu sou meu próprio medo

minha própria lógica

minha própria loucura

e nada menos que alguma coisa entre o azul e o azul.

Eu sou eu: não: eu sou aquele artista

de riso perdido

de tristeza leviana

e baixos tombos

desconexo de muita arte

revestido de tanto talento

espécie de gota de mercúrio ampliada e solta no picadeiro:

incômoda

brilhante

passageira.

Um palhaço ou domador

Um malabarista ou dançarina

que um dia, sem muito jeito e a sós, descobriu-se e q u i

ESTUÁRIO

Uma noite pequena é assim como esta:

quase bêbada

sem nome

sem dono

distraída no tempo

aberta a poemas menores.

Um navegante pequeno é assim como eu:

quase bêbado

sem nome

sem dono

distraído no tempo

aberto a poemas menores.

A diferença está no futuro.

A noite dará em manhã

Eu, em madrugada alheia.

NOITES DE VENTO

Ali

onde apenas eu detenho poderes

ignoras

aceitando o parco destino da tarde.

Glorifico a aurora que nasce para ver-te

e dormes.

Como acordar-te

se também a teu sono jurei eternidade?

Disfarço em alegria o que é temor

Água lívida sobre areia agitada

E deixo-me ao anonimato delicado.

Sou da hora do acaso perante ti.

Quando viras e sem querer me encontras

aí surpreendo-te: ainda sim.

Noites de vento.

Que assim permaneças

Que assim eu esteja

Que assim para sempre envelheçamos o acordo

da sala com o quarto

da palma com os dedos

da intenção com a naturalidade.

Que assim estejas

Que assim eu permaneça

Que assim para sempre envelheçamos o acordo

do quarto com a mobília

dos dedos com os anéis

da naturalidade com a intenção.

ilêncio. Acabamos de nascer

OCUPAÇÃO

Uma hora se volta

para onde se foi.

Um dia

componho o mistério da luz aflita

anunciada

amansada

traduzida em “amo”.

E você.

Uma hora

acompanho o tombo da fruta já pronta

amadurecida

sedutora

certa em fome.

E sabor.

Um dia se vai

para quem se volta.