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Ficha Técnica

Rio de Janeiro, 1989

106 páginas, 79 poemas e textos poéticos

Programação visual: Heliana Soneghet Pacheco

Coordenação editorial: Cecilia Leal

Fotografia: Jackeline Nigri

Gráfica: Reproarte

Comentários do poeta

ENTRE DOIS INVERNOS: O LIVRO DA ENCANTAÇÃO

Um aviso necessário: para entender como o livro nasceu e como foi possível publicá-lo, não deixe de ler Como nasceu o primeiro livro.

O fio condutor de Entre dois invernos são as quatro estações. Começa e termina em invernos e, de forma quase imperceptível, vai se dividindo em capítulos invisíveis demarcados pelas estações. Começo e termino o livro utilizando imagens de bruxa e fada, tentando fazer um contraponto e uma mistura entre bem e mal, amor e desamor, solidão e delicadeza.

Entre dois invernos é um livro de amor a dois, em que as imagens se baseiam também no universo das encantações: além de bruxas apaixonadas, fadas horrorosas, fala muito da relação arte x artista, principalmente com referências ao circo (uma paixão que, em 1999, dez anos depois, escancararia em O diário do trapezista cego. Acho que o poema que sintetiza o livro é "Trapezista":

Cena 1: a pequena plataforma sustenta meus pé.

Cena 2: expectativa. Grande distância para alcançar o trapézio.

Mas alguém, em breve, do outro lado, o lançará em minha direção.

Cena 3: Preparativos para o salto. Um passo à frente. Vento leve. A coragem para o vôo. Impulso.

Cena 4: Mergulho. Corpo no ar. Pés sem chão. Minhas mãos se abrem à espera do encontro.

Cena 5: O trapézio não me é jogado. Instante de angústia. Desequilíbrio na respiração. Cambalhota desengonçada no espaço. A elegância do salto espelhando a deselegância do tombo.

Cena 6: Alguém, por motivos desconhecidos, manteve o trapézio nas mãos. Por amadorismo, esqueceu que existe apenas um único momento-exato para que tudo saia perfeito. Por indelicadeza, não me deixou receber um aplauso que era meu. Por temer a altura, reteve consigo a salvação.

Cena 7: a rede ameniza a dor. Para mim, são textos inocentes, profundos, apaixonados, que, embora não tenham um polimento poético, valem pela imensa carga emotiva que carregam:

PEDAÇOS VII

A cidade é imensa demais para que meus detalhes signifiquem.

poemas curtos, quase lamento, quase alegria, mas redondos em sua existência. A maioria pertence aos anos de 1986 a 1988, tendo apenas um de 1982 – o ano de publicação foi 1989. Entre dois invernos traz, também, alguns apontamentos sobre poder, família e escrita. Foi meu primeiro e inesquecível livro. Criá-lo me trouxe um prazer que acredito que jamais conseguirei descrever. Ainda hoje, tantos anos depois, o olho com respeito, mesmo sabendo de sua ingenuidade vestida de pretensa maturidade. Porque é um livro corajoso, aberto, com poemas que falam diretamente ao coração das pessoas, emocionado, falsamente despretensioso, assumidamente numa primeira pessoa do singular em que o leitor pode achar que funciona como um disfarce. Não é. Cem por cento eu. Todos aqueles encontros, partidas, expectativas foram experimentados.

E mais: Entre dois invernos, assim como na montagem dos livros posteriores, confirmava a importância que eu dava – e que ainda dou – à seqüência que os poemas devem ter no livro. Na verdade, acho que, mais do que livros, faço roteiros de poesia (nunca escolho os melhores, mas aqueles que se encaixam na idéia central que quero transmitir).

Estrutura gráfica e lançamento

A designer Heliana Soneghet Pacheco, que assina a programação visual de todos os meus livros, criou, com a coordenação editorial da também designer Cecilia Leal, uma linda e encantada caderneta espiralada, comprida, repleta de papéis coloridos pulando para fora, colados, formando desenhos e sonhos, com o nome do livro e o meu nome estampados numa etiqueta na capa. Um projeto gráfico lúdico, encantado, que conto em detalhes no link assinalado no parágrafo inicial.

O lançamento aconteceu no Bar Cochrane, em Botafogo (RJ), em 6 de junho de 1989, dois dias depois do meu aniversário de 29 anos. Do lançamento, lembro de que havia muita gente, da emoção sincera de meus amigos em me verem realizando algo tão importante para mim. Lembro também que Cecilia abriu uma champagne e que Heliana montou uma pequena exposição com poemas espalhados nas paredes do bar e que, quando chegou, entrou espalhando pedaços de papel colorido pelo chão, felicíssima, sem se importar com a cara de espanto da gerente.

Também lembro que a jornalista Mara Lúcia Martins recortou o título do livro impresso no convite e colou na blusa. Enfim, estávamos todos emocionados e realizados, eu sei disso. Foi uma noite linda. Quando cheguei em casa, dormi sozinho, mas pleno, e tive minha última lembrança: imaginei o rosto de meu pai, que havia morrido há quase três anos, sorrindo, feliz por eu ter conseguido.

Poemas

REFLEXO

Talvez me sobrem nomes e datas.

Mas a história é pequena.

TRAPEZISTA

Cena 1: a pequena plataforma sustenta meus pés.

Cena 2: expectativa. Grande distância para alcançar o trapézio. Mas alguém, em breve, do outro lado, o lançará em minha direção.

Cena 3: Preparativos para o salto. Um passo à frente. Vento leve. A coragem para o vôo. Impulso.

Cena 4: Mergulho. Corpo no ar. Pés sem chão. Minhas mãos se abrem à espera do encontro.

Cena 5: O trapézio não me é jogado. Instante de angústia. Desequilíbrio na respiração. Cambalhota desengonçada no espaço. A elegância do salto espelhando a deselegância do tombo.

Cena 6: Alguém, por motivos desconhecidos, manteve o trapézio nas mãos. Por amadorismo, esqueceu que existe apenas um único momento-exato para que tudo saia perfeito. Por indelicadeza, não me deixou receber um aplauso que era meu. Por temer a altura, reteve consigo a salvação.

Cena 7: a rede ameniza a dor.

PEDAÇOS VI

da alegria me alcançar

me atiro do viaduto mais alto da cidade.

Durante o vôo, a certeza

do chão estar forrado de sonhos.

PEDAÇOS VII

A cidade é imensa demais

para que os meus detalhes signifiquem.

PEDAÇOS XII

Apesar de algumas pesadas dores

não tive a necessidade aflita

de gritar por tua ajuda como antes.

Murmurei, apenas.

Se o lamento foi denso

e te acordou durante a noite

perdão.

VARANDA

O longe do mar faz fronteira

com outro mar diferente.

Então, onde haveria de haver um encontro

que vingasse em união homogênea

estranhamente existe um abismo

horizontal do tempo: a varanda do mundo.

IMUNIDADE

O melhor segredo

aquele que se quer eterno

se esconde adequadamente

no meio da gaveta.

Um dia, a gaveta é arrumada:

é preciso dar lugar às novas promessas.

E aquilo que se mantiver do antigo mapa

é porque significa inseparável.

Saudades (lembranças) imunes ao tempo.

ESSÊNCIA

O amor é a essência que habita

o intervalo entre uma paixão e outra.

Aquilo que vem

desesperadamente confortante

ao fim de um desejo banal.

Aquilo que vai

falsamente assassinado

no início de um novo prazer do acaso.

INACONTECIDO

Tomei o meu melhor banho

estreei no corpo roupa e sensação novas.

Me achei bonito

e concordante ao tempo chuvoso

(daí íntimo).

Escancarei portas, janelas e peito.

Mas você não apareceu.

Não havia estrela à vista

e parei a contar os intervalos

entre uma tentativa e outra de dormir.

Vestido e cheiroso.

O beijo inacontecido, no entanto,

foi gostoso.

PEDAÇOS XXXIII

A água do mar é quente.

O lugar é bonito.

Me acorde às cinco.

Eu preciso buscar o sol pra você.

Comentários da designer

O primeiro livro – Entre Dois Invernos

  • por Heliana Soneghet Pacheco
  • Eu me lembro que, um dia, Cecila Leal, amiga de uma professora minha, que tinha me visto, na PUC Rio, na apresentação final de um projeto sobre Mario Quintana, me ligou perguntando se eu faria o projeto gráfico de um livro de poesia de um amigo dela. Tudo o que eu queria na vida era fazer coisa relacionada à poesia, e aquele telefonema parecia que coroava um período muito legal em que eu fazia coisas concretas em relação a isso - eu tinha acabado de fazer um projeto em que Mario Quintana era o tema. Ela disse que seu nome era Jacinto e leu uma poesia para mim no telefone que terminava assim: “Me acorde às cinco. Eu preciso buscar o sol pra você.”

    Pensei: ai, meu Deus, esse cara é bom! Me deu nervoso. Ela queria marcar um encontro, mas eu estava indo para Fernando de Noronha, parte dessa minha ligação com ‘poesia concreta’, e só na volta nos encontramos. Foi na casa dela, na rua Ministro Raul Fernandes, em Botafogo (RJ). Um apartamento lá no alto, de onde víamos, da sua varandinha, centenas, milhares de apartmentos dos edifícios vizinhos.

    Era fim de tarde. Eu estava nervosa porque não é sempre que a gente encontra os poetas pessoalmente. Quando chegou, só me lembro que ele tinha um cabelo enorme. A conversa foi tomando seu rumo mais descontraído à medida que os tais milhares de apartamentos vizinhos foram ficando azuis com a luz das televisões ligadas.

    Eu queria saber como ele era, para fazer um livro com a cara dele. Lá pelas tantas, me mostrou um caderno de notas em que ele escrevia poesias e de onde muitas poesias daquele livro vieram. Era uma caderneta em espiral, com páginas coloridas e acho que papéis de seda também. Era o berço onde suas poesias tinham nascido, e ficou claro pra mim que eu tinha encontrado a inspiração para o livro. Deveria ser um livro que contasse do processo da poesia, mesmo que não evidente. Precisava ser só coerente.

    Saí de lá animada com essa idéia e a Cecilia tinha me oferecido a estrutura de onde ela trabalhava para que eu estudasse os layouts. Eu poderia usar fotocopiadora, essas coisas.

    Sei que fui para lá logo no dia seguinte e fiz experimentos com textos de diferentes tamanhos e fontes, formatos diferentes de livro, para chegar até ao ponto em que o design pudesse dizer que ele estava de acordo com o texto.

    Caderneta em espiral

    Eu via o livro como uma caderneta e compridinha, nada quadrada. O espiral parecia óbvio desde o primeiro encontro. Meus testes usaram a impressão em papéis coloridos e a letra em negrito. Cecilia lembrou que, devido ao tipo de impressão que usaríamos, a idéia de fazer em negrito garantiria mais a legibilidade do resultado final.

    A boneca ficou bem legal para eu e o Jacinto pensarmos com os pés no chão. Os papéis coloridos não precisavam acolher a poesia, deveriam ser referência. Estava claro para nós que o livro não era uma caderneta livro, mas um livro inspirado na caderneta e por isso só usando as referências positivas dela. Resolvemos marcar as poesias que pediam isso com papéis presos ao espiral. Isso era possível para o dinheiro disponível e plenamente de acordo com a alma do livro. Sentamos juntos e fomos discutindo cada poesia que deveria ser marcada e de que jeito. Demos nomes aos papeizinhos: me lembro de “borboleta”, “lápis” e “nuvem”. Cada papelzinho foi multiplicado por 500, já que iríamos fazer 500 exemplares de cada livro. Como foram seis diferentes em cada livro, fizemos 3.000 papeizinhos coloridos em diferentes formatos.

    O Jacinto via o livro entre dois cinzas e resolvemos colocar um papel dessa cor no início e outro no final, sem nada impresso. Ele também via no centro do livro que o poema dedicado a seu pai deveria ter uma cor marrom, meio bege. Uma frase (dedicatória) deveria atravessar as páginas centrais do poema, em movimento reto, ligando-as. Eu vi que algo para “o pai” deveria ser em papel vergê. Isso mostrava um certo cuidado que precisava para contrastar com a informalidade da “caderneta”. E ficou resolvido que tanto essa parte do meio quando os papéis cinzas deveriam ser em vergê. O cinza do vergê era um cinza feliz e era o que queríamos. Tudo se encaixou. Teve também uma página em papel manteiga no meio do livro, depois de um poema que falava de inverno e antes de outro que falava em “metade do rosto” e vínculos com o passado.

    Técnicas ao alcance do bolso

    A fonte usada seria uma que estivesse disponível para a técnica de composição escolhida (composer) e de impressão (foto eletrostática). Duas técnicas ao alcance do bolso. Foi a Times em negrito, corpo 12. Títulos em caixa alta e espaço bom entre título e texto. Esse formato se adequava bem ao tamanho das poesias e a clareza que se queria em cada página. Mario Quintana tinha me ensinado que um livro de poesia deveria ter muitos espaços em branco e eu conseguia isso com o formato e a distância entre os parágrafos poéticos, que ficou bem grande. O livro respirava, e isso era bom.

    Resolvido o projeto, fomos para a pesquisa de material. A capa deveria ser forte. Muito forte. Não era só uma capa que sustentasse bem um espiral. Deveria ser forte por ela mesma. Pronta para a briga! Sentíamos isso como parte da alma do livro. Então fomos às papelarias Casa Mattos e Casa Cruz no centro da cidade ver que papéis eles tinham lá. E encontramos um tal de papel couro. Parecia uma madeira o bichinho! Vimos quantidades em relação ao tamanho do livro, ajeitamos um pouco o formato e acertamos a compra. Na saída, encontramos uma amiga do Jacinto que usava uma maleta de médico, mas ela era fotógrafa (Jackleine Nigri). Foi ela quem fez a foto do livro. Dá para ver bem nessa foto a cabeleira que o Jacinto usava naquela época!

    Novas aventuras ainda nos aguardavam. Fui de metrô à Triagem, no subúrbio do Rio, e me diverti num metrê que parecia um trem. Lá estava a tal máquina que iria furar os livros e colocar o espiral. Não era qualquer máquina porque o tal papel couro era duro que só! Achamos o lugar, acertamos preço etc. e precisávamos só acertar a impressão na Reproarte, gráfica indicada pela Cecilia desde o nosso primeiro encontro. A idéia era levar os livros impressos e montados para Triagem e aguardar a encadernação. Tinha um probleminha ainda aí. Os tais papeizinhos tinham que ser perfurados junto com as páginas para ficarem no lugar certo. 3.000 clips foram providenciados e colocados nos papeizinhos exatamente onde deveriam entrar, na posicão correta, claro! Jacinto me contou que juntou um batalhão na casa dele e esses amigos foram os responsáveis pelo recorte dos papeizinhos e pela produção toda. Também cortei vários, mas não me lembro de tê-los montado nas páginas. Eu sabia e gostava da idéia de que o primeiro livro dele tinha a boa energia de tantos amigos em cada página. Ele foi tocado em todas as páginas por mãos de gente amiga, mãos de trabalho, mãos e não máquina apenas! Adoro me lembrar disso. Parece um batizado.

    Com as coisas ajeitadas assim, foi só levar lá e esperar o ok final!… Que nada. Não acabou aí ainda. A máquina do cara de Triagem quebrou de tanto que ele furou papel duro! Mas no final tudo foi feito em tempo. E aí, quando tudo estava pronto, inauguramos o que tem sido uma constante em cada projeto que fazemos juntos. A ajuda do Paulo (Corrêa), irmão do Jacinto, como o salvador da pátria. Sabe que os tais clips, na pressão sofrida pela máquina de furar, fizeram sua marca em cada página? Cada papelzinho estava no lugar certo, mas a marca do clip estava lá. O fim da picada! O Paulo passou página por página com ferro quente até desaparecerem todas as marcas indesejáveis. Dizem que santo de casa não faz milagre, só se for na casa de outro!