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O Derrame das Pedras

Ficha técnica

Rio de Janeiro, 1994

104 páginas, 102 poemas

Programação visual: Heliana Soneghet Pacheco

Coordenação editorial: Cecilia Leal

Editoração eletrônica: Hares

Fotografia: Mara Lúcia Martins

Gráfica: Reproarte

Comentários do poeta

O DERRAME DAS PEDRAS: O POETA, SEU ITINERÁRIO, SUAS SENHAS

A idéia do livro nasceu pronta: um poeta que, para não deixar que seu amor seja esquecido, espalha sete senhas em forma de poesias pelos postes da cidade. O derrame das pedras é o registro literal – e literário – de uma história de amor profunda.

As sete senhas não funcionam como sete capítulos, apenas como marcações, momentos em que o poeta sai às ruas para fazer a sua peregrinação. É o livro que mais gosto, porque acho que consegui concretizar plenamente o roteiro que pensei.

Além dos poemas de amor, o livro reforça personagens e temas dos livros anteriores, como Deus, Rio de Janeiro, a arte de uma maneira geral. São textos curtos, cheios de significados ocultos, de sutilezas.

Uma cena inesquecível

O título é fruto de uma cena que vi na infância. No sítio de minha avó em Araras, Petrópolis (RJ), da montanha que ficava em frente à sala, num dia de chuva, no início dos anos 70, uma cachoeira de pedras, num barulho ensurdecedor, nos fez todos sair do casarão e, abismados, olhar aquele espetáculo de força, pavor, beleza. Foi tudo tão rápido e inesquecível.

Essa imagem voltou com muita força e exatidão à minha cabeça quando tentei definir para mim mesmo o que era amar perdidamente alguém estando diariamente apaixonado. Eu lembrei do maravilhoso espetáculo das imensas pedras rolando, fazendo um barulho ensurdecedor, só que caindo num mar acolhedor e não na terra, como realmente aconteceu. Então, O derrame das pedras é isso: a paixão alucinada dentro do amor alucinado. O livro, em segredo, é um extenso bilhete a um amor desaparecido, que, ao lê-lo sem querer, deu sinais de vida.

Um poema marcante para mim é o de abertura "O tratado dos mágicos", que, no final, diz

(...) Versos

para que em dias de saudade mortal

roubá-los seja a única e inevitável saída.

Estrutura gráfica e lançamento

A imagem que sempre surgia em mim era a de uma colagem, como que retratando o movimento das pedras rolando. Falei isso com com a designer Heliana Soneghet Pacheco e ela pediu para eu selecionar as fotos, os desenhos, os manuscritos, os documentos que, de uma maneira ou de outra, estavam relacionados ao livro. Ampliei um pouco a idéia e separei imagens relacionadas à minha vida. Adoro a capa e principalmente a forma como os títulos dos poemas foram diagramados. É o livro com o qual eu gostaria de ser, O lançamento aconteceu na sede do Instituto de Estudos da Religião (Iser), no Rio de Janeiro, onde eu trabalhava, no dia 4 de maio de 1994. Para comemorar mais um livro, ofereci aos convidados uma festa matinê, com muita música, dança e alegria. Só faltou a designer Silvana César Vargas, minha amiga que falecera há seis meses. Faltou não: estava literalmente no meu peito, no colete que mandei fazer com o pano do vestido de trapézio, preto e amarelo, que ela tanto gostava de usar.

Poemas

O TRATADO DOS MÁGICOS

I

Nada devo obedecer

placas, avisos, alianças>

Nada devo pedir

sinais, idolatria, postais

eu e você

não passando de acaso sincero ou duradouro

eu e você

a meticulosa vaidade

de falsas cartas, de inocentes truques

de luxuosas cartolas, de assustados coelhos

de olhos, de noites de olhos sem fim.

Vivemos, diários e a sós

a parte que nos cabe

reforçando as sete vidas

justificando os sete fôlegos

prepartindo as sete juras

personificando os sete caos

anunciando as sete maravilhas

acobertando os sete erros

esquecendo as sete pedras guardadas

decifrando as sete pedras atiradas

permitindo as sete pedras derramadas

sobre o mar aberto.

II

Nada devo obedecer

identidades, passados, fotografias

Nada devo pedir

socorro, futuro, xícara de açúcar

eu e você

a lógica bastarda

e primariamente revolucionária do dia presente

eu e você

o cumprimento em silêncio

do perdão prometido, da fuga planejada

do escândalo escrito, do sonho revelado.

III

Apenas espalharei pelos postes da cidade

para que não se esqueça

sete enigmas

que seriam sete presságios não fossem sete acordos

que seriam sete recados não fossem sete mensagens

que seriam sete facadas não fossem sete carinhos

que seriam sete verdades não fossem sete suspeitas

do amor que ficou.

Para encontrá-las será preciso apenas cega intuição

Para vê-las apenas olhos despidos

Para lê-las apenas lábios treinados

Para decifrá-las apenas o antigo código secreto: dois

Para guardá-las apenas não temê-las.

IV

Então assim serão sete charadas

que seriam sete senhas não fossem sete poesias

de ter e não saber localizar a ausência

de adorar e manter sob sigilo

o que publicamente já se eternizou.

Versos

para que em dias de saudade mortal>

roubá-los seja a única e inevitável saída.

VIRTUDES

Esse meio termo

que me perde

entre

ódio e amor

prestação e à vista

glória e desistência

branco e tinto

pra você e eu

cansa e aprimora

meu faro de ave de rapina.

Balões de gás que sobem

Aviões de guerra que caem

Momentos de decisão.

Atiro no alvo

Caio atingido.

Mas nunca morro enquanto todos morrem.

Quero sempre o êxtase da particularidade.

Então os dias passam

e eu

entre

mim e você

acumulo dívidas

acumulo roupas sujas

acumulo reparos no apartamento

acumulo perdões resolvidos

acumulo poeira.

Então os anos passam

e eu

entre

mim e você

envelheço.

PEDAÇOS VIII

Morrerei sagrado

jamais consagrado no que faço.

O perdão me veste

mas não se vicia em mim.

Santo de meu próprio perdão sem compromisso

abençôo em silêncio

toda a multidão que me ignora.

PEDAÇOS IX

Seu beijo era nocivo a meu desejo

Seus amigos nunca foram os meus

Sua arrogância era de funcionário público

Seu silêncio, crime hediondo

Sua frieza, impublicável.

Verdadeiramente sinto sua falta.

DECLARAÇÃO

Não há possibilidade de memória:

hoje a chance é a do pavor absoluto

Febre pequena e contínua na pocilga da alma

Cheiros absurdos da ferrugem da lágrima robótica

Eu te amo tão estupidamente

que as flores apenas se mantêm flores quando te penso.

A vírgula do poema é de aço frio

O ponto final, derradeiro

E o corpo, exposto, sua águas de rio sujo

onde conchas e restos de folhas insistem

Eu te amo tão grosseiramente>

que me mantenho flor

Pinto quadros com sangue ralo

Os animas empalhados pelo tempo adquirem voz

e gritam desesperados por mim

Agradeço, sem articular palavra ou esperança

Eu te amo tão humanamente

que na calçada da tarde desfolho

Os ganchos metálicos de minhas patas rangem

Meus nervos, manuais e da carne e do osso, ecoam

Sorriso de lata misturado à aura pura de santo:

o que sou apodrece em prata envelhecida

Eu te amo tão infantilmente

que entre babas e seivas alimento o cosmos

Astronauta de nave construída por pele e tatuagens

desfaleço sem descompressão no fundo abissal

O mar do céu é dentro da estrela do mar

e, tonto, obedeço ao computador que me exige definiçã

Eu te amo tão desesperadamente

que as tempestades acontecem para lamber e viciar

os lábios das terras do mundo

que se acomodam

entre ferros velhos e recentes sementes

onde acumulo anos

a uma espera que é também tua.

FOLCLORE

Não tenho o que dizer a mim mesmo.

Náufrago de memória roubada, rezo

cantando tangos e sambas

entre a Buenos Aires e a Carioca.

Perdido na Uruguaiana

não sei com que sabor ou ritmo

me enganar.

PEDAÇOS XVII

Não tenho tempo para poemas trabalhados.

Escrevo o dia-a-dia apressado de Deus.

REENCONTRO

As sombras

independentes

trocaram carícias.

PEDAÇOS XXI

Denuncio-me.

De livre e espontânea vontade confesso:

fui eu quem desejou a grande tempestade.

Alguém

em algum lugar distante da cidade

também grita diante da multidão

absolutamente encharcado.

O que nos une, grande amor

é mistério.

O DESENHO DOS PÉS

Eu te amo de longos trajetos.

Na Páscoa sucumbi de encontros e estradas

Cortei a veia com poesia

Bebi o sangue rosa-choque encontrado

Purifiquei-te.

Não mais te amo de próximos percursos.

Petrópolis é o berço da aurora

onde sonho

Embora o corpo não esteja por lá assentado.

Comemoro com os que aparecem

na TV defronte

a inesperada chegada de mais um ano.

Abril ou maio, eu já não sei

O amor é do tamanho dos passos

Cometários da Designer

O derrame das pedras

por Heliana Soneghet Pacheco

O derrame das pedras era um livro de paixão absoluta, desenfreada, um turbilhão, onde a imagem de pedras caindo de uma ribanceira no mar simbolizava toda a história. Jacinto falava em imagens de pedras caindo, mas aquela falta de controle me inspirou a pedir a ele para ver tudo de imagens que ele tinha que fossem importantes. Eu não sabia ainda o que fazer, mas precisava vê-las. Seu pai era fotógrafo e pedi para ver suas fotos, pedi para ver sua certidão de nascimento, desenhos, ídolos, torpedos, sei lá, o que tivesse marcado sua vida.

E aí me deparei com uma textura muito interessante. Jacinto já pensava em colagem para a capa e, diante das imagens, tive a idéia de um mosaico fazendo uma composição em que cada pedacinho tinha uma importância, uma mensagem, uma parte da história do poeta. Isso porque esse livro apresentava o poeta muito mais nu do que em Cenas nuas e também muito mais desprotegido do que em Entre dois invernos. Mas ele consegue segurar essa exposição toda poeticamente. Fez um estrutura onde senhas guiam o leitor pelo caminho do livro. Essas senhas foram inspiradas nos resultados de jogos do bicho depositados nos postes da cidade. Eram declarações de amor e mágoa desenfreadas a inspirar poeticamente o projeto gráfico.

E sem conseguir ser diferente da inspiração do poeta, mergulhei com tudo no mundo que se apresentava para mim. Senhas, pistas e poesia. Com o mosaico, via-se a falta de controle e a tentativa de dar lógica ao turbilhão. No miolo, o rompimento com a posição gráfica esperada de um livro tradicional, mas que isso não fugisse a uma lógica intrínseca.

Da mesma maneira que cada pedaço da colagem levava a um todo cheio de vida, cada poema do livro, cada página era um mundo próprio. O poste e a senha aparecem no formato do livro longilíneo e em momentos no livro em que o poeta queria pontuar. Nesse momento, o texto poético foi feito em caixa alta, e um papel retangular compridinho na vertical com um formato de faca ou seta na ponta pontuava. A fonte escolhida foi uma que lembrasse máquina de escrever. A American typewriter foi essa fonte porque tinha uma certa personalidade que eu não via na Courier para aquela situação. E aí o texto dos poemas e o título da capa foram todos nessa fonte. Os títulos internos foram em outra fonte porque a American typewriter é muito marcante e possui levemente um negrito - e o livro precisava dar uma equilibrada para ficar mais harmonioso. Eu não podia fazer tudo bold porque faltaria contraste e a voz do poeta não seria ouvida. A fonte para o título dos poemas foi puramente escolhida pela combinação estética com a fonte do texto. Ainda precisei condensá-la um pouco até que ficasse do jeito que eu queria.

As páginas tinham como projeto serem diagramadas de acordo com o que o texto pedisse em composição com a página ao lado. Isso levando em consideração que eu deveria sempre ter o poema dentro das margens superior, inferior e laterais, mas em quaquer posição na página, contanto que não fosse de cabeça pra baixo ou coisa assim. Com os títulos, por outro lado, esses poderiam ficar em qualquer posição, subindo, descendo, de cabeça para baixo, onde quisessem, onde o poema achasse que eles deveriam ficar. Podia até ter dois poemas numa página, se assim ficasse coerente. Poemas que originalmente tinham uma diagramação especial como “Parte 2”, eu entendia o que o poeta queria e mantinha o desejo dele.

O livro tem abas que são a continuação da colagem da capa sem nenhuma informação adicional. Foi um jeito de embrulhar o livro e fazê-lo envolto num ambiente só dele.

Na finalização, fiz as artes finais na minha impressora a laser e aconteceu uma coisa interessante em relação ao resultado final. As páginas ficaram com um resultado muito legal na laser, mais leve que o resultado da impressão final da gráfica. A impressão foi mais uma vez a off-set rápida, a foto eletrostática - que sempre usávamos para os livros do Jacinto pelo baixo custo.

Essa diferença me chocou, pois, apesar de conhecer bem essa impressão, eu estava no limite de trabalhar com um tema forte: o “derrame”. Eu tinha que pincelar forte, tinha que chegar a um limite extremo e não passar dele. Mas eu acabei passando. Derramou!

Fiquei sem poder abrir o livro por anos, eu acho! Eu o folheava, passando assim com os dedos as páginas, e era meio que agredida pelo negrito da impressão E isso me entristecia, porque nós tínhamos, eu e o Jacinto, trabalhado a diagramação página por página. Cada página foi discutida e decidida por nós dois e isso, além de ter sido delicioso, tinha sido uma nova moda de mexermos em todas aa páginas juntos, coisa que vinha dos outros livros de alguma maneira.

O final dessa história foi quando peguei uma gripe e livros de poesia para ler, uns seis anos depois de impresso. Com frio, na cama, tosse fraca, corpo dolorido - do jeito que minha mãe adora ficar - catei todos os livros do Jacinto para ler. E aí foi a primeira vez que fui realmente ler O derrame das pedras como uma leitora comum e não como quem havia feito o livro e queria ver se estava tudo certo. Abri página por página no tempo de leitura de cada uma, no tempo que eu queria ficar em cada uma e levei um susto! Acho até que chorei! Eu fiquei tão emocionada! E só então consegui ver o resultado do que havíamos planejado. Cada página era um mundo com a combinação das páginas face a face, sendo algo a mais. Eu finalmente, depois de anos, venci a minha decepção e o bloqueio que fiquei, com a frustração do resultado, por justamente ter feito o que era para ser feito desde o início: pegar o livro para ler.